segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cegueira proposital no século 21

O processo de exclusão na vida do ser humano pode começar na hora de seu nascimento, se caso o local onde veio ao mundo for miserável, onde pessoas por falta de oportunidade - em nome da sobrevivência - roubam, matam e, por fim, fazem filhos fadados ao mesmo destino. Os que não morrem antes dos 18 anos – tem seu fim do “rabecão”, como é chamado o carro do Insituto Médico Legal por profissionais da área prisional - , vão presos.
Depois de entrar para o sistema carcerário, comida, roupa e um teto são garantidos aos presidiários. Além da certeza do sustento, relações afetivas estabelecem-se e, a partir delas, a ocorre a busca de uma nova identidade, conceituada por Sawaia (2001) como “uma categoria política disciplinadora das relações entre as pessoas, grupo, ou sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico”.

enfraquecimento
Perde-se autonomia, acumulam-se estigmas e sair das unidades carcerárias assemelha-se a um processo de nascer “manchado”, o que torna as chances de um futuro dito normal ínfimas aos ex-presidiários. Ocorre, então, uma inclusão ilusória, pois a sociedade exclui para depois “incluir” (inclusão social perversa). E essa transmutação é condição de uma ordem social marcada pela desigualdade, conforme Sawaia (2001).
A teoria da doutora em psicologia pela Pontíficia Universidade de São Paulo se materaliza quando observa-se a realidade catarinense: o mercado de trabalho já concorrido por universitários não tem espaço para ex-detentos. Dentro das unidades carcerárias, no entanto, empresas se instalam e exploram mão de obra. Para os presos, essa é uma maneira de adquirir experiência, que, infelizmente, se mostra quase sempre inútil.

reincidência
Um agravante nesse processo de perdas contínuas, diz o doutor em psicologia Hoffmann em sua tese usando Baratta (2002) e Goffmann (2005), é que um preso na maioria dos casos passou por uma série de situações traumatizantes ao longo da vida e, ao chegar na prisão, enfrenta contínuas tentativas de anulação de suas possibilidades de ação, bem como da própria individualidade.
Assim, os primeiros passos na rua são lentos e, por vezes, preguiçosos e lastimáveis. Voltar
para o mundo do tráfico de drogas - causa de 80% das prisões, conforme autoridades - é a saída mais fácil. Muitos já ganham a “liberdade” aliciados a um grupo que atua nesse mercado paralelo. No entanto, ainda existem aqueles que foram bons presos e querem mudar de vida.
A volta da maioria ao mundo do crime para sobreviver reforça o questionamento de Thompson (2002) sobre as “vantagens” de uma vida disciplinada na prisão, citando a psicóloga francesa Simone Buffard. “Na verdade, não é muito difícil ser um bom preso, para aquele que chega a dominar os nervos. O que é mais difícil é saber para que pode servir um bom preso, uma vez que sua pena tenha terminado” (p. 4).

exclusão
Estranhamente, as pessoas, quase em sua totalidade, ignoram esse grave problema social, gerador de violência continua. O confortável a elas, acometidas de uma cegueira proposital e seletiva, parece proteger-se do "mal". Condomínios fechados passam a ser o sonho de consumo da classe média e a realidade da elite. Grades e alarmes contra furto se tornam a projeção simbólica do caos social vivenciado na contemporaniedade.
Fica clara que a preocupação da sociedade em excluir transgressores da lei sobrepõem-se a tentativa de recuperá-los e a reintegrá-los à vida social. O ciclo se cumpre: o cidadão comete um crime, é preso, sai da cadeia, não consegue emprego, volta para o crime para sobreviver e em pouco tempo está novamente atrás das grades.
Agora basta saber se os governos, a pedido da sociedade, tem feito algo para mudar a cruel realidade vista por poucos. Basta saber até quando o assunto será tratado com superficialidade a ponto de ladrões de supermercado continuarem nessa vida por falta de educação, de estrutura, de oportunidade.

amarras
Katya Regina Costa, 28 anos, apenas mais um número de registro na Secretaria de Defesa Civil de Santa Catarina, é uma das vitimas dessas amarras reforçadas pela indiferença. Viveu na rua desde os 8 anos porque sua mãe não aceitou sua opção sexual - homossexualidade já expressa na infância - e por apanhar do padastro. Sobreviveu “batendo carteira” em Joinville e Florianópolis. Aprendeu assinar seu nome apenas ao 24 anos, no Presídio Feminino de Florianópolis.
Em liberdade durante menos de dois meses nesse ano, tentou conseguir emprego, mas todas suas tentativas de inserir-se na sociedade foram frustradas por conta de sua ficha suja e da falta de autonomia e instrução: estudou somente até a 4ª série. O documentário “Amarras” mostra o drama da presidiária, que hoje puxa cadeia na cidade de Mafra, e levanta uma discussão soterrada por parte da sociedade que parece ter esquecido a importância da fraternidade.

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